Ele estava dormindo mal - como sempre - no seu tapete verde e áspero da sala escura d’um apartamento do 7º andar. Alguns raios de sol conseguiam invadir o lugar de maneira deformada, mas eram minoria e não causavam efeito. Acorda com seu sonho recorrente: A imagem do vôo de um besouro indo de encontro ao seu ouvido, sendo que, na hora da penetração é capturado com as duas unhas afiadíssimas dos dedos: indicador e polegar, funcionando como uma pinça e o partindo ao meio. Assustado ele passa a mão na cabeça, pensando no que ele fez antes de dormir. Drogou-se!, havia recordado. Tenta se levantar para fazer algo. Não havia nada para fazer. A sala continuava escura e entediante, tanto pra ele quanto pra ela. Ele então reflete, depois pensa em procurar outra droga qualquer. Reflete de novo, olhando pra mesa, procura algo, mas está com vergonha dela. Finalmente vai...
- Não vou não.
- Como assim não-vai-à-mesa? Você é meu personagem, sabia?
- Sim, eu sei.
- Então. A história precisa continuar e para tal você deve ir em direção à mesa.
- Acalme-se.
- Eu tô calmo. O que aconteceu? Isso é surreal: O meu personagem recusa-se a me obedecer!
- Ok. Serei claro e conciso como você mesmo me definiu: O fato é que eu cansei de participar de suas histórias, ninguém as ler, se você consegue viver assim, saiba que eu não!
- ... preciso de um café.
- E eu de um cigarro.
- Você não fuma.
- Faça-me fumar, ora.
- Ok.
Olhando o seu cigarro sobre a mesa fixamente como um gato ao avistar sua presa movendo-se...
- Dá logo essa porra de cigarro!
- Ok.
Ele pega o cigarro e começa a fumar.
- Grato.
- E agora?
- Bom, eu quero continuar participando de histórias, apenas, não das suas. Você não consegue emocionar nem uma telespectadora assídua de novela mexicana, tá certo que o segredo deles é a música de fundo, aindassim...Não, eu quero navegar em outras páginas, ser popular, quero ser adaptado às telas de cinema, ser metáfora em livros de auto-ajuda, ser fábula em edições de executivos bem-sucedidos.
- Vejo que criei um personagem egocêntrico.
- Hum. Personagem egocêntrico é uma redundância, todo personagem é egocêntrico, afinal, todos queremos ser o meio para emocionar as pessoas. É como um ator numa sala de cinema vendo o público emocionado com sua interpretação, a diferença é que a emoção deles tem menor escala que a nossa, já que eles interpretam a nós, os personagens. Você sabe disso. E tem mais, todo personagem é reflexo de seu autor, mesmo que mínimo.
- Discordo, em todo caso, e quanto a mim? o que farei sem meu personagem?
- Não seja deliberadamente dramático. Crie outro, mas dessa vez o crie mais parecido com você. Tente emocionar-se realmente com ele, coisa que não aconteceu comigo, assim você conseguirá o mesmo resultado com o leitor, e isso não é difícil, vocês não são tão diferentes assim uns dos outros, o problema é que se superestimam muito. Faça certo dessa vez, essa segurança que você me deu; com respostas rápidas e eficazes, tal qual personagens em filmes de ação da década de 90, não combina com você; assim fica difícil.
- É, talvez você tenha razão...
- Claro que sim, temos nossas semelhanças, afinal, eu sou um reflexo, mesmo que mínimo de você, mas é melhor assim, cada um segue o seu caminho, seja ele em páginas ou de outro modo.
- Ainda discordo dessa idéia de reflexo...e preciso de um cigarro, aceita outro?
- Sim...e café também.
- Café. Eu também adoraria.