Friday, February 10, 2006

Marília e a Pós-Modernidade

Ele estava dormindo mal - como sempre - no seu tapete verde e áspero da sala escura d’um apartamento do 7º andar. Alguns raios de sol conseguiam invadir o lugar de maneira deformada, mas era minoria e não causavam efeito. Acorda com seu sonho recorrente: A imagem do vôo de um besouro indo de encontro ao seu ouvido, sendo que, na hora que ele vai penetrando é capturado com as duas unhas afiadíssimas do dedo indicador e do polegar, funcionando como uma pinça e o partindo ao meio. Assustado ele passa a mão na cabeça, pensando no que ele fez antes de dormir. Usou droga!, havia recordado. Tenta se levantar para fazer algo. Não havia nada para fazer. Olha pra estante. Pega um livro. Abre. Página 19:

“(...). Em outras palavras, sob o capitalismo as pessoas permitem que o mercado organize a vida, incluindo nossa vida interior”.

Boceja.

“Equacionando tudo com seu valor de mercado – comercializando –, acabamos buscando respostas sobre o que tem valor, honra e mesmo realidade. O niilismo também pode ser entendido neste sentido prático, do dia-a-dia. ‘Tudo que é sólido se desfaz em ar’”.

Fica entediado e fecha o livro. 30 minutos de inércia e o telefone toca. Era Marília, sua namorada. Ela acabara de chegar de Taiwan d’onde participava d’um congresso de publicidade, seu curso. Comprou um celular digital 7ª geração:

Diz ela: – 1101 1001 1000.

Ele não entende: – Como?

Ela repete mais alto: – 1101 1001 1000.

Ele: – Ok, entendi e a minha resposta é não.

Ela: – 1000?.

– Não gosto de ir em exposições de arte com seus amigos.

– 1001 1111?.

– Seus amigos parecem um elenco de um filme do Wood Allen.

– 1000 1110 1101 1001.

– Ok.

– 1000 1100.

– Ok.

Ela não se despediu. Normal, eles haviam feito um pacto no início do namoro em que nenhum dos lados precisava ser gentil com o outro forçadamente, afinal, algumas vezes acordamos de manhã e não queremos cumprimentar ninguém, no entanto somos obrigados a colocar um sorriso no rosto e fazer as perguntas retóricas de sempre. Eles não tinham essa obrigação.

A sala continuava escura e entediante, tanto pra ela quanto pra ele. Ele, percebendo o tédio da sala resolve ligar a TV. Uma TV digital japonesa, presente de Marília que havia comprado quando ganhou um prêmio de publicidade. Zapeando entre os canais aparentemente sem entender ele pára n’um: "1000 1101 1001 1000 1111 0001 1100 1100 1000 1111 1111". Então, ele desliga.

Por um momento ele reflete. Depois ele pensa em procurar uma droga qualquer. Reflete de novo, olhando pra mesa. Ele quer alguma coisa na mesa, mas está com vergonha dela. Finalmente ele vai. Rápido. Pega papéis e caneta e volta ao tapete áspero. Então decidi escrever uma carta.

São Paulo, 12 de Março de 2014
Querido Pai...


Risca o papel.

SP, 12 de Março de 2014
Pai, já faz um tempo que não nos falamos
Semana passada foi meu aniversário
Eu tô bem aqui...
É. Eu tô feliz
Às vezes eu choro quando lembro daí
Às vezes eu penso em está aí, como o senhor queria


1 hora depois

Na verdade eu não tô feliz
Quando o senhor ler essa carta, se o senhor ler
Eu queria que lembrasse d’àquela música
Aquela música que eu cantava quando criança pra todos rirem
Como se o senhor ao abrir a carta desse um play em sua memória,
e ela tocasse de fundo
Eu não posso voltar
Eu fracassei
Eu me sinto tão longe do mundo
Eu não sei se eu fugi dele ou ele fugiu de mim
Às vezes o sol me acha, mas logo depois eu volto a esconder-me
Tudo é tão visível, invasivo
Tudo é tão superficial, mentiroso
Tudo ficou tão claro que a luz me deixou cego
Espero que entenda.

Coloca-a n’um envelope. Por um momento o envelope resiste, mas ele consegue. Então ele deita novamente. Mais 45 minutos de inércia e algo bate na porta agressivamente. Ele assusta-se. A maçaneta movimenta-se bêbada. Ele então pergunta: “Quem é?”. Não há resposta. Volta ao tapete. Repentinamente, algo volta a bater na porta mais forte ainda quase a derrubando. Ele então toma uma decisão. Vai à mesa sem pensar dessa vez. Pega um pedaço de papel e outra caneta autoritariamente. Escreve algo no papel por exatamente 10 segundos. Abre as cortinas, fazendo com que o sol invada a sala como nunca. Abre a janela. Olha pra sala. Olha pra porta. A porta não resistiu. Ele pula.

Thursday, February 02, 2006

Cassino Royal KM 15

Adoro essa palavra - royal - se tivesse a autoridade em por nomes nas coisas sempre a incluiria. Nomes de Bandas: Rolling Royal Stones, Los Royal Hermanos; nomes próprios: Lucas Royal de Oliveira, Maria Royal Migliavacca...enfim. Por isso a inclui para nomear o Cassino Royal KM 15. E o que é o Cassino Royal KM 15 (esse auto-feedback é típico de professores universitários medíocres) ? Bom, tratava-se de uma mesa e alguns homens que iam todos os fins de semana aos fundos da casa do Papai jogar carteado. Apostado. As apostas não eram grandes, claro, não se tratava de um lugar aonde os homens ricos da cidade iam se divertir. Não tinha homem rico. Lá os apostadores não ganhavam muito em seus empregos, na maioria, em pedreiras. Eles só queriam sentir um pouco de medo, alegria, surpresa, calafrio, ansiedade...coisas que não aconteciam no decorrer de sua semana. Apesar das apostas serem pequenas era impressionante o respeito que um tinha pelo outro. Eu...uma criança de 7 anos, ficava sempre adjacente à mesa. Observando. Olhava o jogo de cada um, tentando decifrar a lógica que cada apostador usava para decidir pegar ou descartar uma carta.

Chega a minha hora!.

Certas horas o meu pai tinha que se ausentar do jogo para vender algo e a partida não poderia parar, então ele deixava eu pegar suas cartas. Sim. Eu, uma criança de 7 anos jogando com os senhores. Devo dizer que é uma das melhores experiências que uma criança pode ter. E eu vou explicar o porquê: quase toda brincadeira da nossa infância é uma simulação da vida adulta, a menina brinca de ser mãe de sua boneca; o garoto brinca de dirigir seu carro. Há um certo prazer nisso. E eu, n’aquele momento, não estava simulando. Aquilo era melhor que qualquer outra brincadeira existente. Era real. E era estimulante. Na primeira vez que aconteceu eu tive um certo receio e vergonha d’eles não me levarem a sério. Eu me ofereci ao papai para continuar seu jogo. Meu pai aceitou. Sentei na cadeira e eles não apresentaram nenhuma mudança facial, era como se o papai continuasse jogando. Senti um certo alívio. Mas, de certa forma, eu entendi. Sempre fui discreto e eles percebiam a minha ânsia em jogar. Apesar da discrição quando ganhava alguma rodada (sim, eu ganhava às vezes) eu não conseguia me conter e explicitava um certo sorriso no rosto, afinal, eu era uma criança e como tal não conseguia evitar as emoções tão facilmente, já os adultos, talvez infelizmente, conseguem conter suas emoções. O melhor momento era, após a vitória, colher o dinheiro. Eu me sentia, talvez, como aqueles velhos que passam dias jogando n’àquelas máquinas viciadas em Las Vegas juntando suas moedas ganhas após elas caírem e fazerem aquele barulho clichê em filmes de cassino. Mas o meu pai sempre voltava e eu tinha que dá meu lugar a ele...e o dinheiro também.