Tuesday, June 20, 2006

fragmentos em lupa

... Na estrada, as mãos acenando substituíam os cabelos encapuzados pelo inverno. Éramos tão amigos que não percebíamos a significância de poder respirar o mesmo ar. Nenhum destino bastava a não ser que completasse a história física que tínhamos começado.
... O calor era irônico; o inverno, companhia. Eles não tinham saudade do resto, o resto ficara nas outras estações... De trem, sem trem.
... Não que eles precisassem dessa fuga, mas foi o que restou depois de malas entorpecidas pelos souvenirs coletados. Cartas, batons, guardanapos de bares parisienses que deixaram de existir. Suas épocas acabaram, por isso o desejo sutil de manter a realidade o tão acesa quanto o tanto de lucidez que lhes restaria após a junta madrugada.
... A lucidez para suar frio no inverno; encher a cara sem motivo, sonhar por sonhar, comer por comer, gozar por gozar.
... Porque isso eles sabiam fazer: gozar. Em todos os sentidos, eram gozadores, natos. E não era qualquer decepção que os tiraria da linha mestra que seguiam, rumo às cartas da sorte ou ao abismo esperado, já que a condição lhes impunha que ao sorrirem deveriam pagar pedágio por ostentação.

...”Ah, o abismo esperado. Terra de ninguém, do nunca, do infinito, do impreciso, do obscuro. Eu sempre esperei o abismo obscuro. Vou lá. Sonhar. Navegar. Quem sou eu? Pegue uma carta. Suma daqui”.

... Enquanto esse meu último fumo se vai, tomo a posição do volante e reparo que os capuzes são retirados vagarosamente no conversível congelante, lata velha memorável. Os cabelos se juntam em tonalidades e luzes e elas gritam que chegariam ao paraíso assim que as luzes do farol estivessem pré-maturas novamente.
... Um paraíso que parecia ser a sala de brinquedos de um deus. Lembrou-me do dia que ele falou conosco: uma tarde chuvosa, o céu refletia petróleo de escuro, então trovejou subitamente, o cara ao lado disse "amém". Ele trovejou mais forte ainda. Aí eu disse: "velho safado". Trovejou, mas foi fraco. Percebendo a vantagem, soltei mais uma vez: "velho safado". A chuva parou.
... E era esse pouco de fé absurda que me lembrava da vida novamente. Minha mente pedia que minha pele se cortasse e se dividisse em cada canto para a posteridade. Mas ao longo da canção percebi que um par de olhos me fitava a ponto de falarem que eu poderia até explodir ali, se quisessem. Eu tinha uma viagem a terminar e seria do jeito que planejávamos. Eles tomando coquetéis de guarda-chuva e eu coletando as gotas.
... A estrada ainda é longa, tão longa quanto os nossos movimentos redundantes de cada dia, mas ela cessará. Sempre cessa. E aí? Talvez continuemos a nos movimentar em cadeiras de balanço... lá e cá, em que cada movimento de ida e vinda, um fragmento do passado é relembrado. A distância diminuiu, mas a saudade não...

4 Comments:

Blogger FranciscoLucas said...

letrinhas pequenas?

7:32 PM

 
Blogger tina oiticica harris said...

Muito bonito, algo de nostálgico, eu mesma me lembrei dos tempos de faculdade, do tempo quando havia tempo...

8:18 PM

 
Blogger K. said...

não sei, mas tenho a impressão de não lembrar ter vivido algo igual. belo texto (:

8:49 AM

 
Blogger paula pavel said...

adorei o texto
belas palavras

7:23 PM

 

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